24 de novembro de 2008

abismo reincidente

X entrou em casa, como sempre pela janela. Tinha perdido a chave há algumas semanas e não era incómodo proceder daquela forma, dada a parafernália do rodar-a-chave-e-ouvir-um-clique. Bater à porta não era simplesmente uma boa opção.


Entrou.


O vento nocturno deturpava os murmúrios que varriam a casa com a inquietude característica dos murmúrios. Fechou a janela e lentamente a inquietude transformou-se numa sensação de aperto. Um aperto, uma estranheza que só o acompanhava na sua casa. Lá fora o vento calava tudo e todos. O fumo do cigarro empoeirava-lhe a visão.
Quando o pressentiram, as vozes transformaram-se em silvos, tentando-o dissuadir de ir ao seu encontro.


Mas ele foi.

Havia nas vozes mais do que uma conversa trivial sobre qualquer coisa trivial. O som dos silvos era borbulhante, tinha nele gotas salgadas que inundavam todas as palavras que iam sendo ditas.
Chegou à cozinha e estavam elas, falando calmamente, tal qual actores num monólogo. a cozinha dividida por uma cortina inexpressiva de insultos e insinuações anteriores à chegado de X.
'O que é que se passa?' disse
'nada... vai-te embora'-a voz parecia querer fugir dali.
X. viu tudo mudar de sentido. Elas estavam agora do mesmo lado da barricada, cavando um abismo capaz de o distanciar das suas vidas. Acto contínuo foi para o quarto, quase sem pensar nas palavras dela.

Deitou-se. A luz ligada assinalava a presença de tempos remotos quando, em pequeno, não conseguia dormir e a sua mãe a ligava.
e adormeceu, com a mãe em dois sítios diferentes.

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